quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Órfãos de justiça

Em uma sociedade na qual o discurso do terror difunde um aumento da criminalidade que nem sempre corresponde aos índices existentes, cada vez se tem menos cuidado para prender e mais cuidado para soltar, invertendo-se a lógica de qualquer Estado de Direito e gerando absurdos que não serão noticiados pelo Jornal Nacional.

Treze de setembro de 2012. Um dia para o Estado de Direito lamentar profundamente. Início de tortuoso período que duraria quase um ano. Joversina dirigiu-se à delegacia de polícia para registrar uma ocorrência acompanhada de seus três filhos, crianças que jamais imaginariam o que aconteceria.
O policial atendente, ao ter em mãos os dados qualificativos de Joversina, constatou a existência de um mandado de prisão expedido em desfavor da desafortunada mãe, efetuando a prisão de imediato. O cumprimento do mandado de prisão foi devidamente registrado em boletim de ocorrência (RO 914-03720/2012).
Joversina foi encaminhada a um estabelecimento prisional destinado a presos provisórios sem sequer saber o destino que seria dado a seus filhos. Passou alguns meses no local até ser transferida para o Presídio Nelson Hungria, conhecido como Bangu 7 e situado no famoso Complexo de Gericinó, no bairro de Bangu, faceta pouco maravilhosa da cidade do Rio de Janeiro.
No início de dezembro, o defensor público que atua na unidade prisional fez o primeiro atendimento de Joversina. Quase três meses depois da prisão, nossa personagem não sabia a razão do encarceramento. Foi informada pelo defensor que a ordem de prisão fora dada pela 4.ª Vara Criminal da Comarca de Campo Grande, no Mato Grosso do Sul. Joversina teria sido presa em flagrante por um crime de furto no ano de 2008 e logo em seguida lhe foi concedida a liberdade provisória. Contudo, como simplesmente desaparecera, sem informar o local em que poderia ser encontrada, foi decretada sua prisão preventiva (autos n.º 0363123-08.2008.8.12.0001).
Atônita, Joversina não conseguia entender o que lhe era explicado. Disse que jamais havia sido presa. Vinha de uma família humilde e honesta e apenas uma irmã já havia tido problemas com a polícia. Angustiada, perguntou sobre seus filhos. O defensor comprometeu-se a tentar obter o paradeiro das crianças. Joversina forneceu o telefone de uma tia, único parente residente no Rio de Janeiro.
Após o atendimento, duas providências foram tomadas de imediato. No telefonema para a familiar de Joversina, o defensor público não obteve qualquer informação sobre as crianças. Já o contato com a defensora pública da 4.ª Vara Criminal mostrou-se mais proveitoso. Diante da informação de que Joversina negava ter sido presa em flagrante, formulou-se requerimento de identificação criminal. Se alguém havia fornecido os dados de Joversina ao ser preso em flagrante, certamente não havia apresentado qualquer documento de identidade. Nesses casos, a lei determina que a pessoa presa seja identificada criminalmente, o que se dá por meio da coleta de suas impressões digitais e pela realização de algumas fotografias. Portanto, era possível confrontar os padrões datiloscópicos de Joversina com as impressões digitais colhidas no momento da prisão, provando que nossa personagem estava presa por um abominável equívoco.
O requerimento, por óbvio, era urgente. Mas somente em meados de março de 2013, houve decisão da 4.ª Vara Criminal determinando a realização da identificação criminal.
Enquanto aguardava a apreciação do pedido, o defensor público entrou em contato com a Coordenadoria de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, a fim de tentar localizar as crianças. Veio a informação de que as crianças estavam em abrigo, por força de procedimento de acolhimento institucional (autos n.º 0057598-24.2012.8.19.0021). A localização viabilizava a formulação de pedido de guarda por um dos parentes, possibilitando que as crianças deixassem o abrigo e voltassem à companhia da família.
Novo contato foi realizado com a tia de Joversina. O defensor público explicou o procedimento que deveria ser adotado para que as crianças pudessem deixar o abrigo. A simplicidade da interlocutora permitia que o defensor percebesse não estar sendo compreendido. A tia de nossa personagem parecia não possuir a iniciativa necessária à solução dos problemas enfrentados pelas crianças. Seria necessário que Joversina deixasse o cárcere para que seus filhos deixassem o abrigo.
Apesar de todas as dificuldades, a notícia da localização das crianças foi capaz de acalmar o coração de Joversina. No meio de todo aquele horror, a localização dos filhos era a primeira boa notícia.
Somente no final de maio de 2013, a coleta das impressões digitais foi realizada. O exame pericial comprovou a versão de Joversina. Não era ela a pessoa presa em flagrante no ano de 2008. Posteriormente, soube-se que a irmã de Joversina, presa em flagrante por furto, forneceu à polícia os dados de sua irmã inocente. A 4.ª Vara Criminal, diante da constatação pericial, revogou a prisão, expedindo alvará de soltura e determinando o envio de uma carta precatória ao Rio de Janeiro, a fim de que juízo situado na cidade em que Joversina estava presa determinasse o cumprimento da ordem judicial de soltura.
Parecia o fim do calvário. Restava apenas realizar o sarq, procedimento que verifica se há ordem de prisão emitida em outro processo ou qualquer outro fato que impeça o cumprimento do alvará de soltura expedido. A Polinter é responsável por realizar tal procedimento. Na ampla maioria das vezes em que a Polinter levanta um óbice contra o cumprimento de ordem de soltura, o óbice mostra-se inexistente. Seja porque os juízos não comunicam recolhimentos de mandados de prisão à Polinter, seja porque a organização do órgão não se mostra a ideal, diversos cidadãos veem ordens judiciais de soltura emitidas em seu favor deixarem de ser cumpridas por força de supostas ordens de prisão que já não existem.
Com Joversina não foi diferente. A carta precatória expedida foi recebida pela 1.ª Vara Criminal do Fórum Regional de Bangu. Entretanto, não foi dado cumprimento à ordem de soltura, pois a Polinter havia apontado um impedimento à restituição da liberdade de locomoção de Joversina (autos n.º 0017660-21.2013.8.19.0204).
Ao fazer contato com a 1.ª Vara Criminal do Fórum Regional de Bangu, o defensor público não obteve qualquer informação sobre o óbice, pois os autos da carta precatória expedida já haviam sido devolvidos à 4.ª Vara Criminal de Campo Grande. Todavia, o contato com a defensora pública do Mato Grosso do Sul também não foi capaz de esclarecer a razão da manutenção do encarceramento, haja vista que os autos da carta precatória ainda não haviam chegado em Campo Grande.
Transcorridos alguns dias foi possível saber que o registro de ocorrência 914-03720/2012 era invocado pela Polinter como impedimento ao cumprimento do alvará. Como este registro foi justamente o que documentou o cumprimento do mandado de prisão expedido pela 4.ª Vara Criminal de Campo Grande, estava claro que a expedição do alvará de soltura havia fulminado o mandado de prisão, razão pela qual o óbice invocado tratava-se de mais um dos inúmeros equívocos da Polinter.
O defensor público, então, obteve cópia do registro de ocorrência apontado, remetendo-o por e-mail à defensora sulmatogrossense. Com o documento, foi formulado pedido de expedição de novo alvará de soltura que deveria ser encaminhado ao fórum regional de Bangu juntamente com o registro de ocorrência. Somente assim, quando da realização de novo sarq, seria possível assegurar que o equívoco não ocorreria novamente, pois o número dos autos em que foi expedido o mandado de prisão, constante do registro, demonstraria serem os mesmos autos em que houve a expedição do alvará de soltura ainda não cumprido.
O pedido foi deferido, desta vez de forma mais ágil. Nova carta precatória foi endereçada à 1.ª Vara Criminal de Bangu (autos n.º 0025758-92.2013.8.19.0204). Realizado novo sarq, não houve a invocação de qualquer impedimento à soltura.
Joversina foi posta em liberdade no dia 14 de agosto de 2013. Passou mais de onze meses presa, sem jamais ter praticado qualquer crime. Tomara que tenha mantido sanidade suficiente para recuperar a guarda das crianças.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

O Estado e o banco dos réus

A ausência de estabelecimentos prisionais compatíveis com o regime aberto de cumprimento da pena de prisão, no interior do Estado do Rio de Janeiro, produz as mais absurdas violações de direitos humanos e deveria colocar o próprio Estado no banco dos réus.

Sempre em virtude de infrações penais praticadas em um contexto de violência doméstica, Denílson foi condenado a um ano e nove meses de prisão. Segundo as quatro sentenças condenatórias proferidas, Denílson teria praticado quatro crimes de ameaça, dois de desobediência – ante a insistência em se aproximar da vítima, mesmo havendo decisão judicial que determinava fosse guardada distância mínima – e uma contravenção penal de vias de fato, que consiste em agressão incapaz de produzir qualquer lesão corporal. As penas deveriam ser cumpridas inicialmente em regime aberto.
Por força do regime estabelecido, Denílson deveria cumprir sua pena em uma casa de albergado. Nos dias úteis, deixaria o estabelecimento prisional pela manhã, a fim de trabalhar, regressando à noite. Aos sábados, domingos e feriados permaneceria na unidade prisional. Apesar da condenação, a notícia não era de todo ruim. Denílson permaneceu preso durante boa parte da tramitação dos processos, aguardando o julgamento em uma cadeia pública. A espera nesta espécie de unidade prisional equivalia ao cumprimento da pena em regime fechado. Portanto, o apenado estava diante de um ganho de liberdade.
Talvez Denílson sequer desconfiasse que a inacreditável inércia estatal tornaria a pena a ser cumprida muito mais dura do que aquela que lhe foi imposta. Nascido e criado no sul do Estado do Rio de Janeiro, onde residem todos os seus familiares e amigos, nosso personagem percebeu de plano que não poderia cumprir sua pena próximo das pessoas com as quais mantém vínculos afetivos. Simplesmente não existem casas de albergado no sul fluminense. A Lei de Execução Penal, em vigor há mais de vinte e cinco anos, determinou a aquisição e a desapropriação de imóveis para a instalação das casas de albergado. No sul fluminense, o Estado ainda não cumpriu sua obrigação legal. Denílson percebeu que somente ele não pode descumprir a lei.
Conduzido à capital do Estado do Rio de Janeiro, distante cerca de duzentos quilômetros de sua cidade natal, Denílson era obrigado a deixar a unidade prisional todas as manhãs. Como era de se esperar, não conseguiu emprego no município do Rio de Janeiro. Nem mesmo quem mostrasse folha de antecedentes imaculada conseguiria com tamanha rapidez. Sem dinheiro e passando fome, só lhe restavam duas alternativas: entregar-se aos pequenos furtos e até mesmo aos roubos – o que jamais havia feito – ou pedir carona até sua cidade natal, deixando de regressar ao estabelecimento prisional.
Denílson voltou ao sul fluminense. Como sua “fuga” não decorria do propósito de não cumprir a pena, mas sim da impossibilidade de fazê-lo, o apenado ficou instalado em sua própria casa. Não demorou a ser recapturado. Menos de dois meses depois de deixar a capital do Estado, Denílson já estava novamente encarcerado.
 Nova surpresa aguardava Denílson. Ao invés de ser conduzido à casa de albergado, eis que o regime de cumprimento da pena que lhe foi imposta continuava a ser o aberto, o apenado permaneceu na cadeia pública que já conhecia. Passados pouco mais de trinta dias, nada obstante todos os argumentos expostos pela defesa técnica de Denílson, o juízo responsável pela execução da pena considerou a “fuga” como prática de falta grave e regrediu o regime de cumprimento de pena, que passou a ser o semiaberto.
Ainda assim, Denílson deveria ser transferido para uma colônia agrícola, industrial ou para um estabelecimento similar, local em que devem ser cumpridas as penas quando o regime de cumprimento é o semiaberto. Além disso, nesse regime o apenado pode frequentar cursos fora da unidade prisional e trabalhar fora dos muros que o detém. Entretanto, nosso personagem permaneceu na cadeia pública em que estava, ante a falta de vagas em qualquer estabelecimento prisional compatível com o regime semiaberto.
Diante da notória violação dos direitos de Denílson, o defensor público que atuava na cadeia pública onde o apenado era mantido encarcerado aventou a possibilidade de impetrar uma ordem de habeas corpus. Desde logo, deixou claro que a medida não criaria uma vaga em unidade prisional compatível com o regime semiaberto. Contudo, sublinhou que se poderia argumentar que a solução da falta de vagas deveria ser a inserção do apenado em regime menos gravoso, o que poderia ensejar sua transferência para casa de albergado ou até mesmo a prisão domiciliar.
Diante da possibilidade de estar novamente em uma casa de albergado, Denílson surpreendeu o defensor público. Ponderou que sua pena estaria cumprida em alguns meses, ante o tempo em que permaneceu encarcerado aguardando o julgamento, tempo este que é subtraído da pena a ser cumprida. Disse que a volta à casa de albergado apenas ensejaria nova “fuga”, na medida em que as mesmas dificuldades já enfrentadas reapareceriam. Expôs que não gostaria de ser preso novamente na presença de seus filhos, o que aconteceu quando da recaptura e segundo Denílson, foi pior do que qualquer pena. Completou afirmando que preferia aguardar o término de sua pena na cadeia pública, a fim de sair do cárcere “sem nada dever”.
A fim de não aumentar ainda mais a lista de prejuízos impostos ao apenado, o defensor público protocolou petição que requeria a declaração da extinção da pena pelo cumprimento e a expedição do alvará de soltura quarenta dias antes do efetivo término da pena. Não raro, a Vara de Execução Penal do Estado do Rio de Janeiro demora mais de um mês para juntar petições aos autos do processo. Para que o juiz aprecie o pedido, na maioria dos casos, a juntada é indispensável. Mesmo com o zelo demonstrado pela defesa técnica do apenado, a determinação de expedição do alvará de soltura somente ocorreu dois dias após terminada a pena. Parecia que o calvário de Denílson chegava ao fim.
Apenas parecia. Toda vez que um alvará de soltura é expedido, realiza-se um procedimento de verificação da eventual existência de ordem de prisão que impeça a colocação do cidadão em liberdade. A verificação foi realizada e não foi apontada qualquer razão que impedisse a soltura. O oficial de justiça, então, munido do alvará de soltura, partiu rumo à cadeia pública em que estava Denílson, a fim de colocá-lo em liberdade.
Todavia, a ordem de soltura não foi cumprida. O agente penitenciário responsável pelo setor de classificação da cadeia pública aduziu que existia um mandado de prisão expedido no curso de processo penal em que Denílson era réu. O defensor público foi verificar a informação e descobriu que o mandado de prisão invocado era oriundo de um dos quatro processos em que foi proferida sentença condenatória. Portanto, a pena já havia sido cumprida, não havendo razão para a subsistência do mandado de prisão.
Formulou-se, então, pedido de submissão do alvará a novo procedimento de verificação de impedimento do cumprimento da ordem judicial de soltura, haja vista que o defensor público já havia provado junto ao setor de classificação que o impedimento invocado era equivocado. O juízo responsável pela execução da pena deferiu o pedido.
Somente após dez dias do término da pena que lhe foi imposta, pena esta que deveria ter sido cumprida em regime aberto e foi quase que integralmente cumprida em regime fechado, Denílson foi posto em liberdade.


sábado, 29 de dezembro de 2012

Os algozes de Pâmela

Jovem e sem antecedentes criminais, Pâmela foi presa preventivamente por força de decisão judicial que revelava convicção sobre sua culpa, antes mesmo que a defesa tivesse a oportunidade de produzir qualquer prova. Ao final de quase dezesseis meses, foi libertada por sentença que a absolveu.

A prisão temporária foi decretada por trinta dias, enquanto Pâmela era mantida compulsoriamente no interior da delegacia de polícia, aguardando a decisão. A prática é largamente utilizada, apesar de ser evidentemente ilegal. Não havendo flagrante delito, tampouco mandado de prisão, inexiste qualquer autorização legal para que se detenha alguém no interior de qualquer delegacia, esperando-se que seja decretada a prisão temporária e expedido um futuro e incerto mandado de prisão.
A prisão temporária somente pode ser usada durante a investigação que antecede o processo e tem tempo de duração estabelecido pela decisão que a decreta. Em regra, o tempo máximo de duração é de cinco dias, prorrogáveis por igual período. Contudo, nos casos em que são investigados crimes hediondos ou equiparados a hediondos, como é o caso do tráfico de drogas, a duração da prisão pode ser de até trinta dias, prorrogáveis por mais trinta.
Quando estavam prestes a se esgotar os trinta dias, o Ministério Público ofereceu denúncia em face de Pâmela e de outros oito acusados, requerendo a decretação da prisão preventiva de todos. A preventiva é modalidade de prisão que pode coexistir com o processo penal, não havendo qualquer prazo previsto expressamente em lei para sua duração. Curiosamente, a nenhum dos acusados foi atribuída à prática do crime de tráfico de drogas. Todos foram denunciados pela suposta prática do crime de associação para o tráfico de drogas. Tal delito não é hediondo e nem mesmo equiparado a hediondo, não autorizando a duração da prisão temporária por mais de dez dias. Novamente, estamos diante de prática utilizada de forma recorrente. Mesmo quando não há qualquer perspectiva de se imputar ao investigado a autoria de um crime hediondo ou equiparado, afirma-se que tal espécie de crime está sendo apurado, de modo a permitir a maior duração da prisão temporária.
Diante da denúncia, o juízo determinou a notificação dos denunciados para que apresentassem defesa preliminar. No mesmo momento, decretou a prisão preventiva de todos os acusados, baseando-se em dois argumentos.
Inicialmente, ponderou que facção criminosa autodenominada Comando Vermelho dominava o tráfico de drogas no bairro de Jacarepaguá, zona oeste da cidade do Rio de Janeiro, tornando necessária a atuação do Estado para tranquilizar a população, afastando os traficantes locais. Prosseguiu o juízo dizendo que Se em um processo como este – em que nove pessoas são denunciadas pela prática do crime de associação para o tráfico de drogas – a prisão cautelar não for justificada para garantia da ordem pública, honestamente, este Magistrado não sabe em que o processo poderá usar tal fundamento legal.
Do ponto de vista técnico-jurídico, o primeiro argumento mostra-se completamente descabido. A Constituição da República dispõe que todos os acusados devem receber tratamento de inocente até que sejam condenados por sentença definitiva. Isso impede que o fundamento para a decretação da prisão seja extraído da acusação que é feita ao réu. Ao afirmar que decretava a prisão para “tranquilizar a população, afastando os traficantes locais”, o juízo presumiu a culpa de todos os denunciados, violando de forma evidente a Constituição.
Contudo, o juízo invocou, ainda, um segundo argumento. Afirmou que os denunciados não haviam comprovado qualquer vínculo com o “distrito da culpa”, o que poria em risco a aplicação da lei penal, ante a possibilidade de se evadirem, caso postos em liberdade. Esta ponderação perderia rapidamente qualquer poder de convencimento. A defesa técnica de Pâmela juntou aos autos o comprovante de residência da acusada e pleiteou a revogação da prisão preventiva, ante a comprovação do endereço em que Pâmela mantinha residência fixa. O juízo manteve a prisão.
Após a apresentação das defesas preliminares de todos os denunciados, o juízo recebeu a denúncia. Pâmela já se encontrava encarcerada há mais de sete meses. Isso significa que caso fosse condenada à pena mínima prevista para o crime do qual era acusada, já estaria presa tempo suficiente para progredir de regime.
Iniciou-se a colheita das provas. A acusação dizia que Pâmela transportaria indivíduos e armas de uma favela até o morro que os supostos traficantes pretendiam dominar, utilizando-se de carros roubados. Pâmela negou o fato desde o primeiro momento. Explicou que em uma única oportunidade fora abordada por homem que seria o chefe da quadrilha e este determinou que levasse duas pistolas para o morro em questão, ameaçando matar seus familiares. A acusada fez questão de sublinhar que não tinha qualquer antecedente e jamais esteve envolvida com ocorrências policiais, nem mesmo durante sua menoridade. Portanto, a versão de Pâmela era de que fora vítima de traficantes e não de que estaria associada a qualquer um deles.
Realizadas as audiências, ouvidas as testemunhas e produzidas todas as provas, o juízo estava pronto para decidir. Pâmela já estava presta há quase dezesseis meses quando a sentença foi proferida. O juízo reconheceu que as provas produzidas eram incapazes de demonstrar, sem deixar sombra de dúvida, que Pâmela mantivesse vínculo estável e permanente com qualquer traficante. Toda aquela certeza demonstrada quando da decretação da prisão preventiva não mais existia. Pâmela foi absolvida (autos n.º 0291004-49.2011.8.19.0001). Recuperou a liberdade após quinze meses e vinte e cinco dias. Seu principal algoz, além do chefe do tráfico, foi a convicção tão precipitada quanto forte, que permitiu a decretação e a manutenção de sua prisão ao arrepio da Constituição.

terça-feira, 25 de dezembro de 2012

Os prejuízos de Paulo

Até quando o sistema de verificação da existência de mandados de prisão, acionado toda vez que uma ordem judicial determina a soltura de um cidadão, será caótico e imporá prejuízos irreparáveis a milhares de pessoas?
 
Novamente, Paulo se via preso. Estava em liberdade desde setembro de 2011, quando lhe foi concedido o livramento condicional. Imaginava cumprir solto todo o restante da pena que lhe havia sido imposta e estava disposto a respeitar todas as condições estabelecidas no momento da concessão do livramento. Faltava muito pouco para o término da pena do crime de furto.
Contrariando suas próprias expectativas, o mês de maio de 2012 impunha a Paulo nova passagem pelo sistema prisional. Desta vez, havia sido preso em flagrante pela suposta prática de uma tentativa de roubo. A comunicação da prisão foi enviada ao juiz responsável pelo caso, que a converteu prontamente em prisão preventiva, determinando a expedição de mandado de prisão. Argumentou que Paulo já possuía antecedentes (o furto voltava para lhe assombrar) e que o crime de roubo era grave, o que permitia presumir a periculosidade de nosso personagem.
A decisão era tecnicamente frágil. A Constituição estabelece que todos os acusados devem receber tratamento de inocente até que sejam condenados definitivamente. Portanto, invocar como fundamento da prisão a gravidade do crime que é atribuído ao réu contraria frontalmente a Constituição, na medida em não se pode afirmar a culpa do acusado em relação a este crime. O que pesou, na verdade, foi o fato de Paulo não ser um novato no sistema penitenciário.
O defensor público responsável pela defesa de Paulo formulou pedido de revogação da prisão. O juiz manteve sua posição. Afirmou que as testemunhas eram as próprias vítimas submetidas à grave ameaça empregada por Paulo durante a tentativa de roubo, razão pela qual a liberdade do acusado as intimidaria. Mais uma vez o juiz partia do pressuposto de que Paulo havia praticado o crime, relativizando a Constituição.
Nem tudo era má notícia. Logo no início de junho de 2012, o juiz responsável pela execução da primeira pena imposta a Paulo declarou tal pena extinta. O tempo de duração da pena havia se esgotado sem que o livramento condicional fosse revogado. Determinou-se, assim, o recolhimento dos mandados de prisão expedidos por força desta primeira sanção penal (autos n.º 012563248.2011.8.19.0001). Os mandados de prisão relativos ao novo processo passaram a ser o único obstáculo entre Paulo e a liberdade.
As audiências do novo processo foram realizadas e todas as testemunhas foram ouvidas. Além disso, Paulo foi interrogado. Ao final, acusação e defesa apresentaram seus argumentos finais.
O próprio Ministério Público pediu que Paulo fosse absolvido. Esclareceu que apenas uma das vítimas o reconheceu e mesmo assim somente teria feito tal reconhecimento na delegacia de polícia, retratando-se perante o juiz e demonstrando não ter a convicção de que Paulo fora um dos assaltantes. A vítima restante, durante todo o tempo, afirmou não reconhecer o acusado A defesa de Paulo fez uso dos mesmos argumentos e sublinhou que sequer seria possível afirmar que Paulo foi reconhecido por uma das vítimas. Um dos policiais que realizou a prisão em flagrante afirmava que esse suposto reconhecimento tinha sido realizado em uma praça com pouca iluminação e o outro policial envolvido no caso dizia ter o reconhecimento ocorrido na delegacia de polícia.
O juiz proferiu sentença absolvendo Paulo. Considerou os argumentos das partes do processo e ressaltou que Paulo não foi encontrado com nenhum dos bens subtraídos, além de ter sido preso em local razoavelmente distante daquele em que o crime ocorreu (autos n.º 0005001-06.2012.8.19.0045). Com a absolvição, o juiz determinou a expedição de alvará de soltura. Estávamos no final do mês de setembro de 2012 e parecia o fim do pesadelo de Paulo. Mas não era.
A expedição de qualquer alvará de soltura, ao menos no Estado do Rio de Janeiro, enseja a realização de um procedimento denominado sarq. Por meio deste procedimento, busca-se verificar se existe mandado de prisão que impeça o cumprimento do alvará de soltura. Em um primeiro momento, apontou-se a existência de mandado de prisão expedido pelo juízo que havia executado a primeira pena imposta a Paulo. É o que se chama de prejuízo.
Diante do prejuízo do alvará de soltura, sequer determinou-se que um oficial de justiça levasse o documento até a unidade prisional em que Paulo se encontrava. Afinal, tal alvará não resultaria na liberdade de nosso personagem.
Contudo, o defensor público em atuação na unidade prisional tinha ciência de que o mandado de prisão encontrado durante o sarq não poderia impedir o cumprimento do alvará de soltura. O juiz responsável pela execução da primeira pena já havia determinado o recolhimento do mandado quando declarou a pena extinta. Como acontece em inúmeros casos, os órgãos responsáveis pelo recolhimento, sempre tão zelosos em apontar razões que impeçam o cumprimento de ordens de soltura, não haviam feito o recolhimento da ordem de prisão.
O defensor, então, elaborou uma petição e dirigiu-se até o juiz responsável pela execução daquela pena, requerendo fosse determinado novo recolhimento dos mandados de prisão e expedido alvará de soltura, a fim de agilizar a recuperação do direito de Paulo à liberdade. O pedido foi atendimento pelo juiz e o defensor ficou absolutamente tranquilo. O único óbice à liberdade havia sido removido e o novo sarq indicaria a ausência de qualquer motivo que impedisse o cumprimento do novo alvará de soltura.
De fato, não houve a indicação de qualquer novo obstáculo à colocação de Paulo em liberdade. O oficial de justiça, de posse do novo alvará de soltura, foi até a unidade prisional em que Paulo estava custodiado. Ao apresentar o alvará ao setor de classificação da unidade, a surpresa: o agente penitenciário responsável afirmou que não poderia colocar Paulo em liberdade, pois o prontuário do preso indicava a existência do auto de prisão em flagrante n.º 089/02083/2012, sem que houvesse qualquer informação sobre ordem judicial determinando a soltura de Paulo no caso em que tal auto de prisão fora lavrado. Portanto, o prejuízo de um alvará impedia novamente que Paulo reconquistasse a liberdade.
A informação causava espanto. A Polinter participa ativamente do sarq e possui cadastro que registra todos os autos de prisão em flagrante e seus respectivos destinos. Improvável que não tivesse percebido o auto de prisão invocado pelo setor de classificação. Entretanto, sem qualquer informação adicional, o oficial de justiça deixou o local sem restituir a Paulo sua liberdade.
Imaginando que o problema estivesse solucionado, o defensor público em atuação na unidade prisional espantou-se ao verificar que Paulo continuava encarcerado. Voltou à Vara de Execução Penal para se informar sobre as razões do não cumprimento do novo alvará de soltura e observou o motivo apontado pelo setor de classificação. Ao cruzar os dados, percebeu que o auto de prisão em flagrante encontrado pelo setor de classificação era decorrente da prisão realizada em maio de 2012, por força da suposta tentativa de roubo, crime do qual Paulo foi absolvido.
Explicando todo o ocorrido, o defensor público enviou ofício ao juiz que absolveu Paulo, pedindo que o alvará de soltura expedido fosse submetido a novo sarq, eis que apenas a apresentação deste alvará ao setor de classificação recolocaria nosso personagem em liberdade. Desta vez, finalmente, não houve prejuízo que impedisse a soltura e Paulo foi colocado em liberdade. Era o dia 12 de dezembro de 2012. O Natal que se aproximava seria mais feliz para Paulo e sua família, o que não apaga todos os “prejuízos” que lhes foram impostos.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

A vítima da loucura

As provas que contrariam os interesses do cidadão preso, mesmo quando o bom senso indica não serem dignas de crédito, podem ganhar mais relevância do que aquelas que apontam na direção da liberdade.

A guerra judicial, ao seu final, restou perdida. Não que as provas produzidas ao longo do processo demonstrassem de forma incontestável a culpa do acusado. Depois de condenado pelo crime de estupro tentado, em primeira instância, o réu recorreu.  Três desembargadores analisaram o caso. Dois deles mantiveram a condenação, mas um entendeu que nosso personagem era inocente.  O voto vencido possibilitou a interposição de um novo recurso a ser analisado por cinco desembargadores diferentes. Novamente, a votação foi apertada. Três desembargadores votaram pela manutenção da condenação, enquanto dois absolviam o acusado (autos n.º 0170263-48.2009.8.19.0001).
Mesmo contando com o voto de três desembargadores que entendiam não haver prova suficiente para a condenação, o réu acabou condenado, somente lhe restando cumprir a pena de 3 anos, 10 meses e 20 dias.
Durante toda a marcha processual, o acusado permaneceu preso, razão pela qual em 25 de janeiro de 2011 cumpriu dois quintos da pena, preenchendo o requisito temporal necessário à progressão para o regime semiaberto. Tal regime não importa, necessariamente, na saída do apenado do cárcere. Entretanto, estando inserido no regime semiaberto, o apenado poderia aspirar visitar periodicamente sua família, trabalhar fora dos muros do presídio, frequentar curso de profissionalização etc., desde que preenchesse os requisitos para tanto.
Em outubro de 2011, o juízo responsável pela execução da pena debruçou-se sobre a pretensão do apenado de progredir de regime.  Reconheceu que os dois requisitos estabelecidos expressamente pela lei estavam preenchidos. Mais de dois quintos da pena já estavam cumpridos e o apenado mantinha bom comportamento carcerário. Apesar disso, o juízo não deferiu de pronto o pedido de progressão de regime. Preferiu determinar que o apenado fosse submetido aos chamados exames criminológicos, a serem realizados por assistentes sociais, psicólogos e psiquiatras. Decisões dos Tribunais Superiores defendem a possibilidade de se exigir os exames criminológicos em determinados casos, mesmo tendo entrado em vigor no ano de 2003 uma lei destinada justamente a acabar com a exigência de realização dos exames nos casos de progressão de regime.
Os exames realizados não revelaram, segundo avaliação do próprio juízo, qualquer óbice à progressão. Contudo, a exigência de realização de tais exames fez com que a progressão para o regime semiaberto somente fosse deferida no final de janeiro de 2012, quando o apenado já havia satisfeito o requisito temporal necessário à progressão há mais de um ano.
Em fevereiro de 2012, nosso personagem cumpriu dois terços da pena. Assim, preencheu um dos requisitos necessários à concessão do livramento condicional. O exercício de tal direito implica no cumprimento do restante da pena em liberdade, ficando o apenado submetido ao cumprimento de determinadas condições. A defesa do apenado, então, formulou pedido de livramento condicional, aproveitando-se do fato do apenado ter sido submetido recentemente aos exames criminológicos.
Surpreendentemente, o juízo indeferiu o pedido de livramento condicional, invocando um dos exames criminológicos que já havia apreciado quando da progressão de regime. Argumentou o juízo que o exame realizado por psiquiatra indicava a existência de patologia, o que impedia o gozo de livramento condicional, tendo em vista a inconveniência de se colocar o apenado em liberdade.
O laudo elaborado pelo psiquiatra causava perplexidade. A doença psiquiátrica que supostamente acometia o apenado não era indicada pelo profissional.  Não bastasse, o laudo omitia o número da classificação internacional de doenças (CID). Afirmava-se a existência de uma doença considerada obstáculo à recuperação da liberdade, mas não se identificava qual era a doença. A razão para tal omissão parecia clara. A conclusão do psiquiatra acerca da existência da doença baseava-se no fato de que o apenado negava a autoria do crime pelo qual foi condenado. Ao menos era isso que constava no corpo do laudo pericial. Tratava-se, portanto, de uma loucura compartilhada, de certa forma, pelos três desembargadores que absolveram nosso personagem.
Em agosto de 2012, novos exames foram realizados. Talvez por força de um tratamento relâmpago, extremamente exitoso, realizado no interior do sistema penitenciário e digno de prêmio internacional, o novo laudo psiquiátrico não apontou qualquer patologia. Aproveitando-se desse "novo" quadro, a defesa do apenado formulou novo pedido de livramento condicional. Apesar do óbice invocado pelo juízo para indeferir o livramento condicional não mais existir, não houve o pronto deferimento do livramento. O juízo determinou o envio de ofício à unidade prisional, a fim de obter informações sobre o tratamento psiquiátrico a que foi submetido o apenado .
Não restou outra alternativa à defesa técnica do apenado que não a impetração de ordem de habeas corpus, a fim de ver deferido o pedido de livramento condicional, antes que o juízo responsável pela execução da pena exija o cumprimento de outro requisito. O Tribunal de Justiça ainda não apreciou o pedido de habeas corpus. A pena imposta a nosso personagem estará integralmente cumprida no mês de maio de 2013. Talvez ainda seja possível exercer o direito ao livramento condicional durante os últimos dias da sanção penal.
Não há dúvida de que o apenado é vítima da loucura. Não de uma loucura que o acometa, pois esta jamais foi diagnosticada. Nosso personagem foi vítima da loucura de um sistema repressivo extremamente burocratizado, desprovido muitas vezes de qualquer razoabilidade e em boa parte caótico.

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

A tenacidade da ilegalidade

Por que o ordenamento jurídico não prevê um sistema de compensação que favoreça aqueles que cumpriram parte da pena em situação mais gravosa que a determinada pela própria sentença condenatória?

O destino de Rayssa não foi diferente do de centenas de cidadãos presos em estabelecimentos prisionais do Estado do Rio de Janeiro. Estamos diante de caso que se repete rotineiramente há anos, sem que estejamos próximos de qualquer solução. Aliás, nem mesmo parece que tal solução seja buscada com o afinco que hipóteses como a de nossa personagem exigiriam.
Negra, muito jovem e pobre, Rayssa foi abordada por policiais militares e presa em flagrante no dia 2 de dezembro de 2011, sob a alegação de que estaria portando droga para fins de tráfico. Posteriormente, foi denunciada pela prática dos crimes de tráfico de drogas e associação para o tráfico de drogas. Permaneceu presa durante todo o processo.
Ao final do procedimento previsto em lei, Rayssa foi condenada a 4 anos e 8 meses de prisão, a serem cumpridos inicialmente em regime semiaberto (autos n.º 223774375.2011.8.19.0021). Não é incomum que pessoas permaneçam encarceradas durante todo o processo para ao final serem condenadas a cumprir pena de prisão em regime semiaberto ou aberto. Em inúmeros casos, inclusive, a prisão é mantida durante todo o processo e o acusado é absolvido ou condenado a cumprir uma pena alternativa à prisão.
Os quatro meses e meio de duração do processo já eram passado. O prejuízo de ter sido mantida em regime fechado durante todo o processo mostrava-se irremediável e Rayssa pretendia olhar para frente.
Como o juízo que julga o pedido de condenação não é o mesmo que executa a pena de prisão, tornava-se necessário que o primeiro comunicasse ao segundo a condenação, iniciando a execução da pena. Somente assim Rayssa seria transferida para unidade prisional compatível com o regime semiaberto, que lhe permitiria trabalhar fora dos muros da prisão ou mesmo frequentar cursos, o que não pôde fazer enquanto estava aguardando o resultado do processo.
A comunicação chegou às mãos do juízo responsável pela execução da pena no dia 25 de maio de 2012. Apesar da transferência de Rayssa parecer providência simples, a inacreditável sobrecarga de trabalho que recai sobre o juízo responsável pela execução das penas de prisão no Estado do Rio de Janeiro torna tudo moroso e produz permanente violação ao direito de liberdade de diversos apenados.
Ciente dessa situação, o defensor público que atuava na unidade prisional em que Rayssa se encontrava, destinada ao cumprimento de pena em regime fechado, procurou se antecipar e já no final de maio de 2012 formulou pedido de imediata transferência para o regime semiaberto. Destacou o defensor que no caso de carência de vagas, Rayssa deveria aguardar em unidade prisional compatível com o regime aberto ou mesmo em prisão-albergue domiciliar. Afinal, esta é a posição do Superior Tribunal de Justiça sobre o tema.
Entretanto, o processo de execução da pena tramitava com a lentidão que lhe é peculiar. Somente no início de setembro de 2012, o juízo determinou a transferência de Rayssa para unidade prisional compatível com o regime semiaberto, sem nada mencionar sobre eventual carência de vagas.
A determinação do juízo não surtiu qualquer efeito em um primeiro momento. Diante desse quadro e do fato de que seu pedido alternativo havia sido ignorado, o defensor público impetrou ordem de habeas corpus perante o Tribunal de Justiça, pleiteando à Corte aquilo que já havia requerido à primeira instância (autos n.º 0053163-70.2012.8.19.0000). Como quase sempre acontece, o Tribunal pediu informações ao juízo responsável por executar à pena, no dia 20 de setembro de 2012.
Antes mesmo de prestar qualquer informação - até isso é por demais demorado - o juízo decidiu adotar medida mais incisiva. Determinou a intimação do funcionário da Secretaria de Estado de Administração Penitenciária responsável por realizar a transferência, ordenando que a realizasse, sob as penas da lei (autos n.º 0203364-71.2012.8.19.0001). Após a adoção da medida, no início do mês de outubro, o juízo forneceu as informações solicitadas pela Corte de Justiça.
A ilegalidade é tenaz. Somente em 5 de outubro de 2012 Rayssa foi transferida para unidade prisional típica de regime semiaberto. Já havia completado mais de dez meses no cárcere e restavam menos de quatro meses para que conquistasse o direito de progredir para o regime aberto. Portanto, dos quatorze meses que deveria permanecer em regime semiaberto, ficou dez em regime fechado, não havendo qualquer mecanismo legal expresso capaz de compensar a ilegalidade suportada.

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

A apresentação de Anderson a Kafka

A insensibilidade diante do quase abandono a que está relegada a população carcerária não esmorece nem mesmo quando se descobre que um de seus integrantes já deveria estar em liberdade há mais de dez meses.

Anderson foi preso em flagrante pela suposta prática dos crimes de furto tentado e posse de droga para consumo próprio. O encarceramento foi comunicado ao Poder Judiciário no dia 2 de setembro de 2011.
O período de Anderson no cárcere deveria ser curto. Logo no dia seis, a liberdade provisória foi concedida. Considerou-se que os elementos informativos colhidos não justificavam a manutenção da prisão. Anderson havia ingressado em residência alheia, mas deixou o local sem nada subtrair. Teria sido encontrada com ele diminuta quantidade de cocaína, que se destinava a seu próprio consumo, fato que não autoriza a prisão. Não bastasse, sequer foi necessária a presença da Polícia no local . Quando os milicianos chegaram ao palco dos acontecimentos, Anderson já havia sido detido por um cidadão comum desarmado (autos n.º 0003261-48.2011.8.19.0077).
Como Anderson não estava preso no mesmo município em que se localizava a sede do juízo, foi necessário expedir um documento denominado carta precatória. Por meio dele, o juízo que concedeu a liberdade provisória solicitava a colaboração de juízo situado no município em que Anderson estava encarcerado para que este determinasse a soltura.
Ao chegar a carta precatória a seu destino, percebeu-se que Anderson já havia sido transferido de unidade prisional. Diante dessa constatação, o juízo destinatário do documento o remeteu a outro município para onde imaginava ter sido o preso conduzido. Por incrível que pareça, a carta precatória se perdeu e Anderson permaneceu esquecido no cárcere.
Não há maré de azar que não seja sucedida por alguma sorte. Passados meses, Anderson foi atendido pelo defensor público que passou a atuar no interior da unidade prisional em que estava preso. Após uma primeira conversa, o defensor foi realizar uma pesquisa sobre a situação de Anderson. Em princípio, não acreditou no que viu. Imaginou que poderia haver decisão proferida em outro estado que determinasse a prisão de Anderson. Contudo, ao prosseguir com a apuração percebeu que não havia qualquer decisão capaz de manter o preso atrás das grades e percebeu que a prisão de Anderson era fruto do extravio da carta precatória.
O defensor público impetrou uma ordem de habeas corpus. Nesses casos, o Tribunal de Justiça pede informações ao juízo de primeira instância antes de apreciar o pedido. Todavia, no caso em tela, o juízo que concedeu a liberdade provisória não mais existia. A Vara Única da comarca, em virtude da demanda crescente, fora dividida em duas varas e o processo de Anderson havia sido distribuído para a segunda.
Ao prestar informações, o novo juízo afirmou que a colocação de Anderson em liberdade exigiria a realização de "novo sarq". Sarq é o procedimento de verificação da eventual existência de mandado de prisão que impeça o cumprimento de alvará de soltura expedido. Assim, sempre que um alvará de soltura é expedido, antes de se colocar o cidadão beneficiado em liberdade, realiza-se o sarq.
Prosseguiu o juízo informando que ele não poderia realizar este novo sarq, pois não dispunha cópia do alvará de soltura, documento que somente constaria no "sistema" do juízo extinto. Com isso, lavou as mãos, concluindo pela necessidade de se realizar novo sarq, mas apontando que somente quem poderia fazê-lo seria um juízo já extinto.
Felizmente, ao apreciar a ordem de habeas corpus, o Tribunal de Justiça determinou a colocação de Anderson em liberdade. O desembargador relator ressaltou o absurdo de se manter um cidadão encarcerado por mais de dez meses, sem que sequer houvesse uma acusação formal contra ele. Anderson jamais foi denunciado pelo Ministério Público. Os fatos supostamente por ele praticados estavam sendo apurados por um inquérito policial até a data de sua soltura. O inquérito também não mais existe. O desembargador determinou que fosse arquivado, tendo em vista que o tempo de encarceramento de Anderson fez com que estivesse cumprida a pena que jamais lhe foi imposta (autos n.º 0036519-52.2012.8.19.0000).
Certamente, Anderson jamais leu o romance "O processo". Mas a dura realidade tratou de apresentá-lo a Franz Kafka.